Entendendo o Consenso Brasileiro sobre a Distrofia Muscular de Duchenne
Entre os anos de 2017 e 2018, nosso país foi presenteado com a publicação do Consenso Brasileiro sobre a Distrofia Muscular de Duchenne. Esse importante documento foi dividido em duas partes: a primeira, com recomendações sobre diagnóstico, corticoterapia e perspectivas de futuros tratamentos para DMD e a segunda, com recomendações sobre reabilitação e cuidados sistêmicos.
O objetivo deste texto é apresentar, de forma resumida, as recomendações contidas no Consenso Brasileiro sobre a Distrofia Muscular de Duchenne. Os documentos na íntegra estão disponíveis online gratuitamente na página dos Arquivos de Neuropsiquiatria.
Antes de descrever essas recomendações, é importante entendermos o que é um documento de consenso e como ele é construído. Quando diante de uma doença, muitas são as informações disponíveis e muitas são as dúvidas de qual caminho diagnóstico e terapêutico a ser tomado. O consenso reúne um grupo de especialistas num determinado assunto, que são desafiados a estudar as melhores evidências de efetividade para uma determinada situação e a partir deste conhecimento, são convidados a fazer recomendações de como a equipe de saúde deve agir. Ou seja, o especialista tem o desafio de pesquisar o que é melhor para os pacientes de forma geral e escrever essa recomendação para guiar a equipe de saúde para conduzir cada caso. Diante de uma doença rara, como a Distrofia de Duchenne, esse desafio é maior, porque são poucas as pesquisas que conseguem investigar a fundo e com um número grande de pessoas as várias opções de tratamento. Por isso, algumas recomendações podem ser feitas a partir da experiência pessoal de cada especialista. O consenso é um guia, mas não podemos esquecer que há situações em que as recomendações de consenso precisam ser adaptadas à realidade de cada paciente. Além disso, o conhecimento médico sobre a DMD tem se desenvolvido a passos largos e desde 2017 já há avanços e novidades publicadas para o tratamento da doença.
Do ponto de vista de diagnóstico, as recomendações mais importantes são:
1. Suspeitar sempre de Distrofia Muscular de Duchenne em meninos, independentemente da história familiar, que demonstrarem:
- fraqueza de musculatura proximal iniciando-se entre 2 e 5 anos de idade;
- atraso psicomotor;
- hipertrofia de panturrilhas;
- creatinofosfoquinase (CPK) notadamente aumentada (> 2.000 U/L);
- aumento das transaminases hepáticas;
2. Diante da suspeita, solicitar a CPK;
3. Se CPK com valor maior do que 2.000 U/L, solicitar teste genético (inicialmente MLPA ou aCGH; se negativos, NGS ou Sanger);
4. Se teste molecular confirmar DMD, seguir para aconselhamento e diagnóstico de possíveis portadoras da mutação na família;
5. Se teste molecular não confirmar DMD, mas grande suspeita clínica, considerar realização de biópsia muscular
Em relação ao uso de corticóide, sua recomendação é de uso a partir do diagnóstico para todos os pacientes com DMD independentemente da mutação encontrada. São opções descritas no consenso o uso de deflazacort, prednisona ou prednisolona. Importante vigilância e manejo de possíveis efeitos colaterais relacionados ao uso crônico do corticóide.
Sobre a perspectiva de novos tratamentos, há comentários sobre os medicamentos de ação direcionada a mutações específicas definidoras de DMD (eteplirsen, drisapersen e ataluren) e agentes antioxidantes (idebenona). Na ocasião da reunião do grupo de trabalho para redação do consenso (segundo semestre de 2016), alguns estudos sobre essas drogas ainda não haviam sido finalizados e as evidências científicas de sua efetividade ainda não estavam claras. É recomendado rever os artigos mais recentemente publicados sobre esses medicamentos.
A segunda parte do consenso foi publicada em 2018 e se concentrou nas recomendações de reabilitação e cuidados sistêmicos, organizadas por fase de doença, conforme se segue:
1. Estágio 1: Pré-sintomático (do nascimento aos 3 anos de idade)
· Avaliação e intervenção da fisioterapia motora já recomendadas
· Monitorar desenvolvimento neuropsicomotor
· Informar família sobre a doença e oferecer suporte emocional
· Vacinação contra agentes relacionados a infecções respiratórias:
o pneumococo 10 ou 13v no primeiro ano de vida
o pneumococo 23v anualmente a partir dos 2 anos de vida
o anti-influenza a partir dos 6 meses de idade e a pós, anualmente
· Monitorar peso e altura
· Monitorar níveis de vitamina-D; suplementar se necessário
· Suplementar sulfato ferroso de acordo com as recomendações do Ministério da Saúde
2. Estágio 2: Sintomático Precoce (de 2 aos 7 anos de idade)
· Avaliação e intervenção da fisioterapia motora, aplicar escalas de funcionalidade no seguimento
o Recomendam-se exercícios de alongamento
o Recomendam-se exercícios aeróbicos de baixa intensidade
o Exercícios excêntricos de impacto devem ser evitados
o Recomenda-se uso de órteses curtas diurnas, para prevenção de deformidades
· Monitorar desenvolvimento psicossocial pelo risco aumentado de TEA, TDAH, TOC e DI
o Intervenção fonoaudiológica ou psicopedagógica pode ser necessária
o Adaptações escolares e aulas de reforço podem ser necessários
· Iniciar uso de corticóide e monitorar seus possíveis efeitos colaterais
o Monitorar níveis de vitamina D e suplementar se necessário
o Considerar densitometria óssea
o Monitorar ganho excessivo de peso
· Monitorar saúde cardíaca anualmente
o Considerar medicamentos para cardioproteção
3. Estágio 3: Fase de Transição
· Avaliação e intervenção com fisioterapia motora, aplicar escalas de funcionalidade no seguimento
o Recomendam-se exercícios de alongamento
o Recomenda-se uso de órteses longas diurnas, que facilitem a ortostase, para prevenção de deformidades
o Considerar gessamento seriado
· Avaliação e intervenção com fisioterapia respiratória
o Monitorar capacidade respiratória com espirometria
o Usar técnicas com empilhamento de ar, respiração glótica, uso de ambu
· Monitorar desenvolvimento neuropsicomotor
o Estimulação com fonoaudiologia, terapia ocupacional ou fisioterapia pode ser necessária, objetivando melhorar funcionalidade
o Psicoterapia pode ser necessária se sinais e sintomas de depressão ou ansiedade, assim como TDAH ou TOD
· Manutenção do uso de corticóide e monitorização/intervenção de seus possíveis efeitos colaterais
· Monitorar saúde cardíaca anualmente
o Recomendado início ou manutenção de medicamentos para cardioproteção
o Considerar Holter para o diagnóstico de arritmias cardíacas
4. Estágio 4: Fase inicial de perda da marcha
· Avaliação e intervenção com fisioterapia motora, aplicar escalas de funcionalidade no seguimento compatíveis com a fase
o Recomendam-se exercícios de alongamento (membros superiores e inferiores)
o Considerar hidroterapia
· Considerar uso de cadeira de rodas manual com adaptações para a coluna vertebral, objetivando retardar a progressão da escoliose e prevenção de úlceras cutâneas
· Avaliação e intervenção da saúde respiratória
o Monitorar capacidade vital forçada: se inferior a 20-25% da predita, recomenda-se suporte ventilatório
o Usar técnicas de tosse assistida (manual ou mecânica) quando pico de fluxo menor que 270 L/min
· Monitorar saúde psicossocial
o Estimulação com fonoaudiologia, terapia ocupacional ou fisioterapia pode ser necessária, objetivando melhorar funcionalidade
o Psicoterapia pode ser necessária se sinais e sintomas de depressão ou ansiedade, assim como TDAH ou TOD
· Manutenção do uso de corticóide e monitorização/intervenção de seus possíveis efeitos colaterais
· Monitorar saúde cardíaca anualmente
o Recomendado início ou manutenção de medicamentos para cardioproteção
o Considerar Holter para o diagnóstico de arritmias cardíacas
· Considerar cirurgia de correção da escoliose
· Monitorar saúde óssea; considerar uso de bifosfonatos
Estágio 5: Fase tardia de doença (final da adolescência à vida adulta)
· Considerar uso de cadeira de rodas motorizada com adaptações para a coluna vertebral e suporte para os braços
· Considerar uso de ventilação não-invasiva, diurna e noturna, de acordo com valores de capacidade vital forçada
· Atenção com a suplementação de oxigênio no suporte ventilatório: risco de narcose hipercapníca e apneia
· Considerar uso de tecnologias assistivas para as AVDs, lazer e aprendizado/ trabalho
· Manutenção do uso de corticóide e monitorização/intervenção de seus possíveis efeitos colaterais
· Monitorar saúde cardíaca anualmente
o Recomendada manutenção de medicamentos para cardioproteção
o Considerar Holter para o diagnóstico de arritmias cardíacas
· Considerar cirurgia de correção da escoliose
· Monitorar saúde óssea; considerar uso de bifosfonatos
· Atenção à saúde emocional
· Atenção à saúde nutricional e à necessidade de modificações dietéticas
Concluindo, é importante reforçar que este texto é um resumo do conteúdo das duas partes do consenso brasileiro sobre a DMD e é altamente recomendada a leitura do documento na íntegra para maiores informações. Além disso, é necessário entender que a ciência está sempre progredindo e que desde a publicação do nosso consenso muitas outras publicações sobre a doença já se tornaram disponíveis, fazendo com que seja necessária em breve a atualização das recomendações aqui descritas.
Dra. Clarisse Pereira Dias Drumond Fortes
Graduação em Medicina na UFRJ
Especialização em Pediatria e Neurologia Pediátrica no IPPMG/ UFRJ
Mestrado em Saúde Coletiva pelo IMS/ UERJ
Doutorado em Clínica Médica (Saúde da Criança e Adolescente) pela FM/ UFRJ
Pesquisadora do Centro de Pesquisa em Doenças Neuromusculares do IPPMG/ UFRJ
Siglas: DMD = Distrofia Muscular de Duchenne; CPK = Creatinofosfoquinase; MLPA = Multiplex Ligation-dependent Probe Amplification; aCGH = array Comparative Genomic Hibridization; TEA = Transtorno de Espectro Autista; TDAH = Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade; AVD = Atividades de Vida Diária; TOC = Transtorno Obsessivo-Compulsivo; DI = Déficit Intelectual; TOD = Transtorno Opositivo-Desafiador; UFRJ = Universidade Federal do Rio de Janeiro; IPPMG = Instituto de Pediatria e Puericultura Martagão Gesteira; IMS = Instituto de Medicina Social; UERJ = Universidade do Estado do Rio de Janeiro; FM = Faculdade de Medicina
Referências Bibliográficas:
ARAÚJO, A.P.Q.C.; et al. Brazilian consensus on Duchenne muscular dystrophy. Part 1: diagnosis, steroid therapy and perspectives. Arq Neuropsiquiatr. 75 (8), Aug, 2017. p. 104-113.
ARAÚJO, A.P.Q.C.; et al. Brazilian consensus on Duchenne muscular dystrophy. Part 2: rehabilitation and systemic care. Arq Neuropsiquiatr. 76 (7). 2018. p. 481-489.
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